A possibilidade de criar elucubrações à volta daquilo que na imagem pode ser objecto do discurso parece depender da capacidade de gerar no interior do próprio discurso um efeito de reversibilidade entre conceitos e categorizações. Não é possível desenvolver o conceito da universalidade de uma imagem sem reflectir igualmente sobre uma categoria que lhe seja contrária. A identidade de uma imagem não está radicada num conceito sem que esteja igualmente radicada num conceito oposto. A natureza paradoxal da imagem não é exclusiva do discurso da modernidade, iniciada por Kant na célebre discussão sobre o esquematismo transcendental e a imagem pura, ou no problema da antinomia do gosto, tratada na sua terceira Crítica.
Já Platão reflecte sobre as tensões presentes na imagem quando afirma que esta existe relativamente a um original, mas que se afasta desse original para corporizar, na sua aparência, uma natureza única. O afastamento da imagem relativamente ao seu original - a Ideia - é a condição da existência da própria imagem – uma entidade existente em si mesma, sob as condições da sua simples presença – isto é, na qualidade de aparência. Aquilo que a imagem mostra nunca é uma representação ou uma abstracção, um determinado isto ou aquilo – ela mostra uma tensão radicada no valor de aparência, isto é, como força do aparecer em presença. Em Platão é evidente o valor negativo da dimensão aparente da imagem. Se a imagem só pode existir porque única, se a sua natureza distinta é ad subjectum, isso deve-se ao facto de ela estar irremediavelmente destinada à precariedade do mundo das coisas moventes. Ela será tanto mais aquilo que é quanto mais se afastar do original que a sustenta. A ideia de mesa é sempre superior à natureza precária e aparente com que a mesa real se dá a ver enquanto imagem. Para Platão a imagem deve a sua marca distintiva - aquilo que a distingue de uma família de casos – à sua presença enquanto resquício material de uma ideia.
Com Kant o problema da imagem insere-se no âmbito vasto da produção dos juízos, sejam eles reflexivos ou determinantes – produtores ou não de conhecimento. De certa maneira os paradoxos da imagem em Platão encontram-se em Kant – já não ao nível de uma ontologia, de uma ciência do Ser, mas ao nível de uma fenomenologia, uma ciência do aparecer. Esta inflexão pressupõe necessariamente um movimento contrário das tensões implicadas na produção da imagem. É o particular que determina o universal. É a singularidade com que algo se dá a ver, isto é, com que algo se mostra enquanto imagem de si mesmo, que funda no sujeito a sua natureza transcendental. Do mesmo modo que não é possível ver duas coisas diferentes no mesmo sítio e ao mesmo tempo também não é possível ver a mesma coisa ao mesmo tempo a partir de sítios diferentes. É a tensão descontínua das coisas na modalidade do espaço - tempo que o sujeito se imagina como sujeito da imaginação. O “isto é Belo” kantiano releva a natureza superior da experiência do gosto - a experiência em presença, sendo absolutamente individual, uma vez que o seu objecto é o aparente percepcionável, é o fundamento de uma experiência que procura a validação universal sob a forma sintética de um juízo.
Esta inversão do universal relativamente ao particular reflecte que aquilo que existe sob as condições do nome “belo” vale em absoluto por si mesmo, na modalidade do existente enquanto aparente. A enunciação platónica que afirma a mentira enquanto imagem dá lugar, com Kant, à verdade enquanto imagem.
O valor de verdade atribuído pela modernidade à modalidade da aparência parte de uma enunciação performativa da visão. O “isto é belo” pressupõe um trabalho de síntese entre um isto particular e um belo tendencialmente universal. Neste sentido a imagem é o campo das tensões gnoseológicas em que aquilo que pode ser conhecido assume a dimensão de uma síntese (um juízo, qualquer que ele seja) a partir de uma fenomenologia da percepção. A enunciação “isto é uma coisa” é a formulação, em síntese, de algo que é porque se dá a ver enquanto entidade presente. O ser das coisas não existe fora de si na medida em que o ser das coisas está na sua própria aparência.
A arte não é senão a problematização ao nível da imagem de uma tensão essencial que opõe fenomenologicamente o sujeito de uma visão e o objecto na sua condição de coisa vista. Esta tensão articula de modo mais ou menos conflituoso um saber (que não é obrigatoriamente um conhecer) que parte de um ver, pondo em evidência a função de síntese da imagem na medida em que é por ela que é possível pensar o universal (um saber) contido no particular (o ver). De certa maneira as contradições entre universal e particular, sujeito e objecto, saber e ver, invisível e visibilidade são as forças de síntese daquilo a que Kant designa de imagem pura, a propósito do conceito de esquematismo. Kant entende por imagem pura - imagem não sensível - a faculdade de estabelecer uma relação entre, por exemplo, uma esfera e a circunferência que a representa. A imaginação é, com Kant, a primeira figura moderna de uma imagem que passa de representativa, reprodutora de uma ideia (a imagem platónica), para a imagem como re- -apresentação, quer dizer, como algo percebido – percepcionado – em si mesmo. O esquematismo kantiano produz, por assim dizer, a imagem da imagem, a possibilidade de algo se destacar do fluxo ininterrupto da matéria e ser percepcionado na modalidade distintiva do aparente, nos limites de uma totalidade que é igualmente uma unidade.
A faculdade da imagem é o domínio de uma tensão entre a natureza imanente do aparente e a natureza transcendental de um juízo. A faculdade da imagem é a pré-visão da união do conceito (pelo qual é possível dizer “uma coisa” ou “qualquer coisa”), com um dado da sensibilidade (com o que não é “nenhuma coisa”). É precisamente a tensão como limite que funda o distinto, distinto porque uno e único na sua aparência, ao mesmo tempo que funda o próprio sujeito como sujeito de uma intenção. Tensão e intenção: tensão como composição em presença da unidade do aparente e intenção na medida em que o aparecer como distinto é função do sujeito-de-uma-representação. Se, como já foi atrás referido, o ser das coisas não existe fora de si, a essência do sujeito encontra no aparecer-do-mundo-a-si o reflexo da sua própria essência. A essência do sujeito não é senão a intencionalidade imanente que há em ver “uma coisa” na unidade e unicidade do seu aparecer.
Para compreender a tensão como condição da imagem Kant refere o tempo como possibilidade da “presentação” da composição da unidade em geral. Isto significa que é pelo tempo que é possível repercutir fenomenologicamente a unicidade da imagem no fluxo indistinto da matéria. Perceber uma circunferência como representativa de uma esfera significa perceber a esfera como função de próprio tempo. É a natureza sincopada do tempo que dá a ver a esfera como totalidade em si mesma. Ou seja, como possibilidade de ser representada.
O tempo kantiano, considerado como condição daquilo que sendo distinto se mostra como uma totalidade – condição do aparecer da imagem – está muito próxima da ideia de ritmo enquanto elemento primeiro e irredutível que marca a passagem da matéria inarticulada à Forma. Encontramos esta analogia em autores tão distintos quanto Aristóteles ou Hölderlin. Num célebre epíteto o autor alemão afirma que tudo é ritmo; que todo o destino do homem é apenas um só ritmo celeste, assim como toda a obra de arte é um ritmo único.
Aquilo que é uma ideia investida de um efeito sobretudo literário, e portanto demasiado abstracto para que seja possível chegar a quaisquer tipo de conclusões, ganha outra dimensão quando associada à ideia de estrutura. As teorias da percepção da Gestalt têm subjacentes à ideia de estrutura uma concepção ritmada da visão. A percepção da forma como totalidade em si apenas se faz pela submissão à constante alternância com um fundo. A psicologia da forma concebe o sistema forma/ fundo como uma totalidade situada acima das partes. Forma e fundo são totalidades – unidades mínimas da percepção –, mas totalidades que apenas podem existir na relação uma com a outra.
Agamben (2003), num texto intitulado “A Estrutura Original da Obra de Arte” faz uma indagação sobre a natureza paradoxal do conceito de estrutura, citando para tal a definição dada por Lalande, na segunda edição do Dictionnaire Philosophique, e que o autor sublinha ser uma derivação do conceito de estrutura da própria psicologia da forma: o termo estrutura designa, em oposição a uma simples combinação de elementos, um todo formado de fenómenos solidários, de tal modo que cada um depende dos outros e não pode ser aquilo que é senão na, e pela, relação com eles. Segundo Agamben (2003) a natureza paradoxal do conceito de estrutura deve-se ao facto de ele se referir simultaneamente ao elemento primeiro e irredutível que habita a forma e ao mesmo a uma “qualquer outra coisa” que está para lá da própria forma, e sem a qual ela não pode ser aquilo que é. Por um lado dá-se uma regressão infinita em direcção ao elemento primordial da forma, por outro uma progressão infinita em direcção a algo que está para lá da própria forma, e sem a qual ela não pode existir enquanto tal. Teríamos assim “qualquer outra coisa” que, sendo estranha à forma é, ao mesmo tempo, o seu elemento irredutível - a cifra original -, e a que Agamben se refere como “o quantum original para lá do qual o objecto perde a sua própria realidade”.
Retomando o problema kantiano da experiência do gosto verifica-se que é precisamente ao nível do “isto é belo” que o problema da estrutura do objecto, enquanto imagem, assume uma importância decisiva na relação com o sujeito. Se a percepção do mundo nas dimensões finitas do espaço/ tempo é a objectivação imediata da essência do sujeito, na medida em que ele sabe mais do mundo do que aquilo que lhe é permitido ver (é possível saber o que é uma mesa sem estar na presença dela) e, portanto, é na finitude do mundo que o sujeito está ontologicamente destinado àquilo que sabe, a síntese categorial “isto é belo” cumpre a intencionalidade humana na dimensão pura do não- -saber. Não-saber do sujeito e estrutura do aparente aproximam-se radicalmente. Na analítica do belo Kant define quatro tipos de categorias para enquadrar o objecto da experiência estética, propondo uma definição de belo para cada uma delas. Segundo a categoria da relação o belo é a “forma da finalidade percebida sem a representação de um fim”. Para esclarecer esta definição Kant recorre ao exemplo de uma túlipa selvagem, a que se refere como a “bela forma de uma flor selvagem”, e da qual tem conhecimento através de uma descrição de M. de Saussure, no livro “Uma Viagem aos Alpes”. A forma, a “bela forma da flor selvagem”, determina obrigatoriamente, na organização que apresenta, uma finalidade. Finalidade essa que não só desencadeia como orienta o sentimento de beleza. Poder-se-ia pensar que é na representação dessa organização que o sujeito cumpre uma intencionalidade transcendental – sujeito da representação de uma organização. No entanto Kant afirma mais adiante (§42. Sobre o interesse intelectual do belo) que se a túlipa selvagem for substituída por uma imitação, e se a imitação for reconhecida enquanto tal, o interesse por ela desaparece imediatamente. Se por um lado tudo na forma da túlipa parece organizado com vista a uma qualquer finalidade, para que o interesse sobre ela se mantenha é necessário que haja qualquer coisa que igualmente se mantenha como não sabido. A túlipa apresenta uma totalidade que corresponde em si mesmo a uma finalidade, a um dessein, a um desígnio. Se a túlipa for verdadeira a organização que determina uma finalidade formal é, ela própria, desprovida de um fim. Não é possível saber porque é que a túlipa se organiza tão especificamente daquela maneira e não de outra maneira qualquer. É precisamente esta falta que possibilita a manutenção daquilo a que Kant se refere como sendo um “prazer desinteressado” – algo que cumpre aquilo que é próprio do sujeito mas que não acrescenta nenhum conhecimento sobre aquilo que é o objecto da sua atenção. A experiência desta falta absoluta, espécie de ritmo baseado numa articulação interrompida entre aquilo que é específico da túlipa (estrutura no sentido regressivo do termo) e uma finalidade qualquer ulterior (estrutura no sentido progressivo do termo), cumpre aquilo que é o próprio agir da intencionalidade humana: considerar desinteressadamente algo como sendo belo.
Miguel Freitas
Professor, Pintor
Referências Bibliográficas
Agamben, G. (2003). L’ Homme sans contenu. Clamecy: Circé.
Kant, I. (2008). Crítica da razão pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Lalande, A. (1985). Vocabulário técnico e crítico da filosofia. Porto: Rés.
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