terça-feira, 4 de novembro de 2008

Criatividade e Deficiência Mental: a aceitação de algo único e especial

Carolina Correia Crispim
Psicóloga

Este artigo pretende abordar o desenvolvimento criativo como resultado do equilíbrio entre os aspectos intrínsecos do indivíduo e o contexto social em que se insere.
Serão explorados temas como a auto-determinação e a satisfação das necessidades psicológicas básicas, a motivação intrínseca e extrínseca e a percepção pessoal de cada um sobre as suas capacidades (auto-eficácia). Após uma breve análise de alguns factores que estão na base do processo criativo, iremos reflectir sobre a evolução da forma como a sociedade olhou para a pessoa com deficiência ao longo dos tempos e sobre a influência que essa visão teve sobre a educação para a criatividade da pessoa diferente. Por fim, haverá a partilha de um trabalho relativo à promoção da criatividade, realizado com um pequeno grupo de pessoas com deficiência mental onde serão discutidos alguns factores que entraram em jogo no processo criativo e alguns obstáculos e dificuldades observadas durante essa experiência.
Auto-determinação
Assumindo que o desenvolvimento da criatividade resulta do equilíbrio entre os aspectos intrínsecos do indivíduo e o seu contexto social, assumimos também que o ser humano é um organismo activo com uma tendência inata para o desenvolvimento, que luta pela mudança e pela integração das experiências num self coerente. Esta tendência humana de evolução não surge de forma automática já que necessita do meio envolvente para acontecer, ou seja, o contexto social pode reforçar ou diminuir a motivação e determinação de uma pessoa.
A auto-determinação é sem dúvida necessária para o desenvolvimento e funcionamento do indivíduo, podendo considerar-se essencial para a satisfação das necessidades básicas humanas (Deci & Ryan, 2000a; Deci & Ryan, 2000b).. É provável que, se as necessidades básicas não estiverem satisfeitas surjam desequilíbrios e disfunções a todos os níveis que se traduzam num processo criativo “defeituoso” ou impeçam inclusivamente que este aconteça. Por outro lado, se as necessidades básicas forem satisfeitas influenciam a motivação, persistência e energia que são aspectos importantes da activação e intenção que estão na base do comportamento criativo do indivíduo e da regulação cognitiva, biológica e social. No entanto, o movimento de acting out e produção pode derivar de uma motivação intrínseca ou de uma pressão externa, havendo pessoas que produzem por motivação genuína e de forma mais livre, com maior criatividade e persistência.
Ochse (1990) investigou os aspectos motivadores de pessoas que tinham dado grandes contributos criativos em várias áreas. Foram identificados alguns exemplos: a) o desejo de obter domínio sobre um dado problema b) necessidades de obter reconhecimento c) vontade de alcançar auto-estima c) vontade de descobrir uma ordem subjacente nas coisas. Os resultados mostraram que alguns reflectiam uma motivação intrínseca e que outros traduziam uma motivação extrínseca, mas também foi possível mostrar que muitas vezes se combinam mutuamente para fortalecer a criatividade. No entanto, a motivação intrínseca, centrada na tarefa, é de grande importância para a criatividade, uma vez que as pessoas estão muito mais propensas a responder criativamente a uma dada tarefa quando estão movidas pelo prazer de a realizar.

O Papel da Motivação no Desenvolvimento da Criatividade
Tal como já foi referido anteriormente, a motivação é fulcral para o desenvolvimento do potencial humano e existe no indivíduo desde o seu nascimento.
A manutenção da motivação e o seu crescimento ao longo da vida do indivíduo depende da presença de alguns factores contextuais como sejam, o feedback positivo do desempenho que conduz a sentimentos de competência, a liberdade de escolha e autonomia para tomar decisões, e a qualidade da relação e segurança que esta transmite.
O desenvolvimento da criatividade depende assim de um conjunto de factores que promovam a satisfação de três necessidades psicológicas básicas: competência, autonomia e pertença.
As directivas externas, a pressão da avaliação e os objectivos impostos conduzem na maioria das situações a uma diminuição da motivação e consequentemente a uma diminuição da criatividade. Estas condições externas observam-se em alguns meios onde as pessoas com deficiência estão inseridas, pois ainda existe uma visão redutora da capacidade da pessoa com deficiência em tomar decisões de forma autónoma o que tem como resultado, um controlo excessivo por parte dos pais e cuidadores de todas as áreas da sua vida. Esta situação contribui para o desenvolvimento de atitudes passivas, diminuição da autonomia de decisão, percepção de falta de capacidade (auto-eficácia) e auto-controle e em última instância contribui para o desequilíbrio mental.

Auto-eficácia
No que diz respeito às capacidades para agir e produzir, a verdadeira questão não será a sua inexistência, mas sim a percepção sobre se terão essas capacidades ou não. Num processo criativo, a intenção de resolver o problema e atingir o objectivo causa a tensão necessária que contribui para a criação. Pensa-se também que é necessário que neste período de tensão a pessoa seja capaz de acreditar que consegue atingir os seus objectivos, o que possibilita, fazer escolhas sobre a direcção da acção, estabelecer metas e impulsionar esforço e persistência na sua concretização.
A crença de que se é capaz de atingir os objectivos depende segundo Bandura (1986), da interpretação das experiências de sucesso anteriores como fruto das suas capacidades, da observação de sucessos sucessivos de modelos com características pessoais similares à pessoa que os observa, da comunicação credível e do feedback positivo que guie a pessoa durante a tarefa ou que a motive a dar o seu melhor e, um estado de humor positivo que reforce a percepção das suas capacidades. Quando estes factores estão presentes existe uma maior probabilidade de encontrarmos uma pessoa com vontade de aprender e correr riscos e disposta a ultrapassar todas as fases de tensão que envolvem o processo criativo.

A Visão da Pessoa com Deficiência
Discutidos alguns factores que participam no desenvolvimento da criatividade de um indivíduo, surge a vontade de enquadrar o tema na pessoa com deficiência, por ser uma característica pouco explorada em detrimento de outros aspectos como a inteligência e a autonomia. A distância entre criatividade e deficiência deveu-se talvez à evolução da visão da sociedade sobre as pessoas com deficiência, tendo estas passado por várias privações, que diversos autores consideram como fases.

Pereira (1984) afirma que a forma como a problemática das crianças ou jovens com problemas foi perspectivada ao longo dos tempos pode ser diferenciada em quatro fases.
Numa primeira fase, a da Separação, as pessoas com deficiência eram consideradas como possuindo capacidades sobrenaturais e, por esse facto, estavam separadas das ditas “normais”. Por vezes eram aniquiladas ou veneradas porque os seus problemas eram ligados ao sobrenatural e ao mágico provocando o medo e o afastamento da sociedade.

Numa segunda fase que se prolongou por toda a Idade Média, a da Protecção, apesar de muitas pessoas com deficiência serem consideradas possuídas pelo demónio outras começaram a ser protegidas pela igreja. Não lhes eram conferidos quaisquer direitos e eram colocadas em asilos, hospitais ou hospícios. Este período, considerado como a pré-história da Educação Especial, foi essencialmente asilar.

Posteriormente entrou-se numa terceira fase, a da Emancipação, que se iniciou por volta do séc. XVII, em França, com o ensino de surdos-mudos.
No séc. XVIII, surgem os primeiros trabalhos escritos sobre o tratamento médico de atrasados mentais e estabelece-se a distinção entre idiotismo e demência, segundo Veiga (2000). No decorrer desta fase iniciou-se a organização da Educação Especial, uma evolução da ciência e da medicina da revolução industrial e iluminismo.
Apareceram as escolas residenciais e o ensino dos deficientes. O pensamento pedagógico desta época caracterizava-se por uma instrução individualizada, instrução de skills funcionais, pela preparação meticulosa do meio ambiente da criança, com ênfase na estimulação e despertar dos sentidos da mesma e por uma recompensa imediata após uma correcta execução. Este período teve como característica principal o forte cariz assistencial aliado a algumas preocupações educativas. Defendia-se que a educação deveria ocorrer em ambientes segregados.

Durante o século seguinte, séc. XIX, aconteceu o desabrochar das grandes preocupações com a educação das crianças deficientes aliada a um aumento da influência médica e ao surgimento das teorias de Darwin. Desta forma, em alguns países como a Alemanha, Suíça, Estados Unidos e Inglaterra, são criadas as primeiras escolas para idiotas e Espanha lança a primeira lei que prevê a existência de escolas para surdos. Também Down em 1866 explica o mongoloidismo actualmente conhecido como Trissomia 21.
Os semi-internatos e as classes especiais surgem como alternativas para ajudar os pais de portadores de deficiência, devido à crise económica.

A atitude emergente de respeito pela diversidade promoveu a necessidade de atribuir direitos iguais à pessoa com deficiência, o que irá provocar grandes mudanças. Actualmente podemos afirmar que nos encontramos na fase denominada por identificação e ajuda.
Esta fase é caracterizada essencialmente pela integração das pessoas com deficiência. Segundo Bairrão (1998) o paradigma assenta na concepção de que todos os cidadãos têm os mesmos direitos, nomeadamente à educação e ao ensino, que devem adaptar-se às suas necessidades. Neste período, valoriza-se o potencial humano em detrimento do diagnóstico médico, como forma de mudança e integração.

Surge assim uma sociedade que, embora tenha uma identidade própria, costumes e cultura globalizantes, aceita a diversidade e expansão de cada indivíduo, não procurando converter a pessoa em «normal» mas sim, aceitá-la como ela é, com todas as suas características e diversidades, reconhecendo-lhe os mesmos direitos que a todos os outros.

Assim, a mudança gradual nas mentalidades em relação à pessoa com deficiência permitiu que esta passasse a ser vista em toda a sua complexidade, não só como uma pessoa com um baixo rendimento cognitivo mas também como um ser com potencial de desenvolvimento em várias áreas, como a criatividade.

Criatividade na Deficiência
A criatividade nas pessoas com deficiência tem sido um tema pouco tratado na literatura científica, no entanto tem havido cada vez mais necessidade, da parte das entidades que apoiam esta população, de desenvolver a sua criatividade pela significação que os processos e as realizações criativas têm para o desenvolvimento da subjectividade e para a saúde psicológica

A vontade de mostrar a evolução da intervenção com as pessoas com deficiência leva à partilha de uma experiência de exploração pela criatividade de um grupo de pessoas com deficiência.
Esta experiência teve como objectivos, desenvolver nestas pessoas competências de socialização e comunicação e sensibilizar a comunidade para as questões da deficiência e para o seu potencial criativo.

Concebido e realizado por 16 jovens com deficiência de uma Instituição de Solidariedade Social da zona de Sintra, o projecto teve três fases distintas e uma duração de 6 meses em 2007:

Na 1ª fase, o grupo de jovens decidiu após um processo de brainstorming, sensibilizar a comunidade envolvente para a necessidade de reciclar e reutilizar. através das suas obras construídas com objectos destinados ao lixo (caixas de ovos, tecidos, etc.).
Na 2ª fase, o grupo criou, semanalmente, objectos representativos de animais, num acto puramente criativo.
Na 3ª fase, distribuíram os objectos em vários pontos da comunidade, como a biblioteca da escola, a farmácia, o café, etc.




Durante esta fase, os jovens tiveram de estabelecer contacto com pessoas da comunidade no sentido de as sensibilizar para o projecto e ao mesmo tempo sensibilizá-las para o seu potencial criativo. Com esta experiência pudemos recolher reacções diversas da comunidade, na sua maioria receptivas e disponíveis, mas também houve situações de resistência em os receber e atitudes depreciativas dirigidas às suas obras em material reciclado.
As reacções menos positivas levam-nos a reflectir sobre o que ainda teremos de “lutar” pela mudança de mentalidades. pois ainda existem muitas pessoas que avaliam a obra criativa pelo indivíduo que a criou, julgando-o à luz de ideias preconcebidas e pouco realistas.

O trabalho criativo também fez suscitar nos artistas muitos momentos de ansiedade, receio da crítica e frustração pela obra criada, provavelmente porque durante anos não lhes foi promovida autonomia de pensamento, sendo excessivamente orientados em todas as suas acções pelos pais, educadores e meio envolvente mais próximo.

O objectivo deste trabalho foi o de proporcionar um ambiente de aceitação e valorização do indivíduo ao longo do processo de trabalho. Este meio facilitador conduziu a uma mudança na motivação e percepção de eficácia, dos indivíduos que ao longo das semanas se foram sentindo menos ameaçados pela crítica e revelando mais das suas habilidades criativas.

Este trabalho veio assim confirmar a importância do ambiente social de aceitação e do reforço da autonomia no desenvolvimento da criatividade e no bem-estar e equilíbrio mental, abrindo igualmente portas para a discussão do papel fulcral da motivação na satisfação das necessidades psicológicas básicas.

Conclusões
Este texto pretendeu mostrar que a visão sobre a criatividade sofreu grandes mudanças, especialmente a partir dos anos 70, tendo passado a dar-se maior atenção não só aos factores intrínsecos da pessoa mas também aos aspectos sociais, culturais e históricos, impulsionando desta forma uma perspectiva sistémica do fenómeno criatividade.
A criatividade resulta de uma tendência humana em direcção à auto-realização, segundo Carl Rogers, Abraham Maslow e Rollo May (e.g. Alencar & Fleith, 2003), mas depende também de um ambiente que propicie liberdade de escolha e de acção e reconheça e estimule o potencial para criar.
A diversidade cultural que existe entre os povos, como a língua, tradições, regras e formas de interacção, influenciam grandemente a expressão da criatividade, já que essa diversidade se manifesta na pluralidade e originalidade de identidades que caracterizam os grupos e sociedades tornando-se ela própria fonte de criatividade e inovação.
As políticas culturais que assegurem a livre circulação de ideias e obras e reforcem a sua difusão através de planos de comunicação interculturais, levarão a um fomento do desenvolvimento do potencial criativo dos seus membros e a um enriquecimento cultural a todos os níveis.
Numa sociedade mais aberta à diversidade, as pessoas com deficiência foram ganhando gradualmente algum espaço para se manifestar enquanto seres com vontade própria e potencial para criar. Há no entanto ainda muito a fazer nesta área, principalmente, na criação de intervenções específicas que promovam a sua autonomia de pensamento e os liberte de uma postura passiva e pouco crítica.
Referências Bibliográficas
Alencar, E. S. & Fleith, D. S. (2003). Recent theoretical contributions to the study of creativity. Psicologia: Teoria e Pesquisa,19.(1), 1-8.
Bairrão, J. (1994). A Perspectiva Ecológica na Avaliação de Crianças com N.E.E. e suas Famílias: o caso da Intervenção Precoce. Inovação, n.º7, p. 37-48.
Bandura, A. (1986). Social foundations of thought and action: A social cognitive theory. Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall.
Deci, E. L. & Ryan, R. M. (2000a). Self-determination theory and the facilitation of intrinsic motivation, social development, and well being. American Psychologist. 8. 68-78
Deci, E. L. & Ryan, R. M. (2000b). The "what" and "why" of goal pursuits: Human needs and self-determination of behavior. Psychological Inquiry, 11(4), 227-268.
Ochse, R. (1990). Before the gates of excellence. Cambridge, NY: Cambridge University Press.
Pereira, L.M (1984). Evolução do Estatuto do Deficiente na Sociadade. Horizonte. 1, 4, 132-135
Veiga, L., Dias, H. Lopes, A. & Silva, N. (2000), Crianças com Necessidades Educativas Especiais: Ideias sobre conceitos de ciências. Lisboa: Plátano Edições Técnicas.

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