quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Rastos e marcas de quem fala por "outras palavras"

Domingos Morais
Escola Superior de Teatro e Cinema (IPL) e Instituto de Estudos de Literatura Tradicional

“O falar não é a única forma de linguagem”
João dos Santos (1)(1957)

Precisamos, de vez em quando, de recordar o que devia ser óbvio. Todos sabemos que nem só de palavras vive a comunicação entre humanos mas procedemos como se apenas fosse válido e pertinente o que podemos organizar em textos, orais ou de preferência reduzidos a escrita.
Somos assim levados a valorar quase exclusivamente o que somos capazes de dizer falando ou escrevendo, num processo que por vezes parece irreversível na construção de uma outra humanidade, em que os sentidos se especializam na tradução textual do que aprendemos pela luz, o som, o movimento, o tacto, os sabores e odores, a própria memoria dos afectos que nos vai construindo.
Outras formas de sentir e comunicar além da verbal e textual, insinuam-se, felizmente, a todo o momento, na vida de relação e na expressão pessoal de cada ser que precisa de agir e fazer para ser capaz de pensar, como Wallon (2) (1942) nos ajudou a compreender.
Mas pensamos como? Prevendo, antecipando, representando, fazendo, transformando, comunicando. Com tudo o que podemos e temos à mão, mobilizando o que sabemos e inventando o que não temos. E este pensamento/acção foi o que nos salvou (até ver) de desaparecermos da face do planeta.
Se nada nos tivesse empurrado para fora do Paraíso, quer na versão bíblica ou mais provavelmente pelas alterações de clima que nos deixaram há cerca de 16 milhões de anos (aos símios nossos antepassados) sem as acolhedoras florestas e a abundância de alimentos, não teríamos tido (os primatas sobreviventes) a possibilidade de nos construirmos enquanto espécie. Encontrámos na nossa fragilidade os impulsos de sobrevivência que podem explicar a singularidade de respostas que tanta dificuldade temos ainda hoje em aceitar.
Aos artistas, em magnânima cedência, é concedida a possibilidade de usarem ou mesmo inventarem novos usos e significados para as linguagens. Dos cientistas, espera-se a solução dos males que nos afligem, a previsão e antecipação do futuro, a procura da felicidade. E nesta dicotomia reside talvez a nossa dificuldade em compreender que uns e outros se complementam nos instrumentos e meios que usam.
Parece-nos poder afirmar que se há espécie que sabe o que é viver na “corda bamba”, é este bendito sapiens sapiens que encontra, nas fraquezas, força para engendrar soluções, experimentar instrumentos, cooperar q.b., quando a necessidade a isso obriga.
Uma das mais recentes adaptações (na escala de milhares de anos que nos separa da última glaciação) foi termos sido capazes de integrar nas comunidades quem era diferente, com uma genial premonição de que não sendo suficiente a selecção natural e a mutação genética para resolver as sucessivas desgraças que nos iam atingindo, não vinha mal ao Mundo se alguns eram muito altos e outros muito baixos, se alguns eram surdos e outros cegos, se algumas marcas, doenças ou deformações apareciam inexplicavelmente sem que delas houvesse memoria no grupo atingido.
Mas não devemos ficar por aqui na enumeração de diferenças e no que seria um dos mais aspectos que se revelaria essencial na construção de comunidades complexas. Longe ficava a deriva dos recolectores, cuja única especialidade deve ter sido aprenderem a safar-se dos predadores, que viam melhor, corriam mais, eram mais fortes e tinham os melhores territórios. O gesto preciso e instrumentado permitiu mudar a vida e criar algum conforto, a par com um crescente sentimento de que era possível prever ou evitar males futuros.
As marcas que fazemos e por vezes deixamos, nos objectos, na terra e nas pedras ou nos novos suportes (papel, tela, ficheiro de imagem) são para algumas pessoas a única forma de expressão e comunicação em que se sentem bem e nos conseguem fazer entrar no seu universo pessoal. Por vezes é pelo gesto transfigurado em movimento e dança (ou música) que essa corrente se estabelece.
E para cada um de nós o desafio da vida é, na sua singularidade, encontrar as vias e meios ou suportes em que se sente capaz de encontrar equilíbrio, resolver conflitos, buscar soluções para o que lhe importa, estabelecer pontes com os outros e ser capaz de ser aceite e sentir-se útil.

1 in “Fundamentos psicológicos da Educação pela Arte”, in Educação Estética e Ensino Escolar, Lisboa, Ed. Europa-América, 1966
2 WALLON, H. De l’ acte à la pensée. Paris, Ed. Flamarion

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