Sobrevoando a corda bamba
Marijke Boucherie
Professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Existe uma passagem em Hamlet em que o protagonista se interroga sobre o valor da literatura. Tendo assistido à comoção com que um actor grita a dor tresloucada da rainha de Tróia, Hecuba, perante o corpo do marido assassinado, Hamlet espanta-se com a veracidade da representação que lhe parece mais convincente de que a realidade da sua própria dor:
Não é monstruoso que este actor aqui,
Por uma ficção apenas, um fumo de paixão,
Tenha forçado tanto a alma ao que concebeu
Que, por ela alterado, a cara lhe empalidece,
De lágrimas nos olhos e tumulto no aspecto,
A voz tolhida, e todos os actos moldando-se
na forma ao que imaginou? e tudo por nada!
Por Hecuba! (1)
Eis como, pela boca de Hamlet, Shakespeare formula um comentário possível sobre o valor das palavras, neste caso, uma cena inspirada num texto axial da literatura ocidental, a Ilíada de Homero: “uma ficção apenas, um fumo de paixão, um nada”.
Estava eu a ler este excerto com os meus alunos em 1993, quando, de repente, as palavras de Hamlet me paralisaram com a revelação de uma verdade absoluta. Num sentido muito literal fui incapaz de continuar a ler a acabei por abandonar a sala. O meu terror era genuíno: como posso eu ser professora de literatura quando eu própria me interrogo sobre a realidade da mesma? Como é que posso ensinar literatura se - naquele momento, pelo menos – ela se me revelava como insubstancial, falsa até?
Não era nenhuma teoria platónica que me fazia desconfiar da arte. Era sim a negritude da minha alma que, naquele ano, se apertou na identificação com Hecuba e com Hamlet que eu imaginava grávido do seu pai morto (fazendo dele uma mulher). Foi o que escrevi numa carta aberta aos meus alunos que li na aula seguinte: que a literatura vale a pena porque não se substitui à vida mas é parte integrante dela, pois sem palavras como podemos ter acesso à vida? Como podemos falar do passado e do futuro? Como podemos representar o “nada”? A realidade de Hecuba só se acede mesmo através do nome Hecuba.
O incidente que acabo de contar parece ter um final feliz: eis como uma professora acaba por descobrir o valor da literatura. Ou não é admissível imaginar uma professora de literatura que se interrogue acerca daquilo que ensina e que é compelida a resgatar a cada momento “a verdade da mentira que é a arte” como diz Picasso?
Admissível ou não, esta professora existe, tal como existem poetas que têm medo da poesia e que são tomados de pânico perante aquilo que fazem. Pense-se na poetisa inglesa Stevie Smith, por exemplo, que ilustrava os seus poemas com doodles de modo a afastar os críticos mais audaciosos e cujos rabiscos com linhas e letras ela própria não sabia definir. “Será que são poemas?” perguntava aos textos que simultaneamente escrevia e desenhava e onde muitas vezes falava da tensão entre o que se sente e o que se diz, entre a intenção do poeta e a tensão do poema:
A Palavra
O coração pulsa em torrentes de alegria,
Os lábios falam de seca,
Porque há-de o meu coração estar repleto de alegria
E a minha boca não?
Tenho medo da Palavra, dizê-la e escrevê-la,
Tenho medo de tudo o que é gerado e nasce;
É este medo que torna a minha alegria numa sombra. (2)
Stevie Smith (1902-1971)
Stevie Smith nasceu no início do século XX e vivia num subúrbio pouco elegante de Londres. Em criança esteve dois anos internada num sanatório e foi ali, aos oito anos, que descobriu a força da ideia do suicídio. Era fisicamente tão frágil que tinha que comprar a roupa nas secções de vestuário para crianças. Trabalhava como secretária e todos os dias, navegava de comboio entre casa e emprego até que a exaustão a obrigou a parar. “Excêntrica” os críticos chamavam-na, mas como ser “in” quando se é uma “animula, vagula, blandula do escritório”, como ela diz num poema, e se habita o Hades do século XX onde deambulam as sombras famintas dos subúrbios e dos comboios?
Os textos de Stevie Smith celebram aquilo que lá não está: gritam, sussurram, imploram, cantam e exprimem um desamparo fundamental que é sempre, e no último momento, resgatado pela energia de uma voz que percorre todas as cores do espectro tonal. Sem chão formal nem teórico para lhe dar substância, cada poema desta autora (literalmente “ímpar” porque “odd”) é um salto mortal sobre o vazio, como se apenas a repetida e compulsiva experimentação da ausência instaurasse a realidade.
A função do desenho na poesia de Stevie Smith está ligada à procura deste equilíbrio, como se a forma visual e sobretudo o próprio traço fossem necessários para fixar a natureza insubstancial das palavras e estancar a sua fluidez. Não é por isso de estranhar que a obra mais radical de Stevie Smith, um álbum de desenhos e legendas escritas na própria caligrafia (Some Are More Human Than Others de1958) tenha sido aceite por uma editora chamada Gabberbochus Press que privilegiava o livro enquanto objecto estético. Para os fundadores da casa editora, Francesca e Stefan Themersons, o conteúdo de um livro está intrinsecamente relacionado com a sua forma física: o formato, a espessura, a textura do papel ou a caligrafia são parte integrante da mensagem. A visão dos Themersons estava ligada às vanguardas europeias (eles próprios eram artistas polacos que se tinham refugiado na Inglaterra), porém também acolhiam textos que não cabiam nos circuitos consagrados do mercado da arte. Daí terem escolhido o nome de Gabberbochus para definir o seu projecto, pois gabberbochus é a tradução latina de Jabberwocky, título do famoso poema de “nonsense” de Lewis Carroll. Os Themersons perceberam a relação existente entre a arte da vanguarda do século XX e a tradição inglesa da literatura de nonsense do século XIX que foi inaugurada por Edward Lear quando, em 1846, publicou o seu primeiro A Book of Nonsense.
Ilustrador, aguarelista e pintor paisagístico de profissão, Edward Lear não ficou famoso por causa da sua obra pictórica mas sim pelos versos ilustrados para crianças que publicava copiosamente sob o álibi de “nonsense”. Em 1846 “nonsense” ainda tinha o significado seguro de “disparates, coisas não sérias” e serviu na perfeição para acolher tudo aquilo que, fora deste contexto, ainda não podia ser dito ou visualmente representado. Tão “modernos” eram os desenhos de a A Book of Nonsense que, na altura, houve quem os julgasse demasiado violentos e não apropriados para crianças. Quanto aos versos, a brincadeira com ritmos e rimas acolhe, impune, cenas extremas que anunciam a futura literatura do absurdo:
There was an Old Man of Cape Horn,
Who wished he had never been born;
So he sat on a chair,
Till he died of despair,
That dolorous Man of Cape Horn.
Edward Lear, A Book of Nonsense (1846)
A mensagem inerente ao título “A Book of Nonsense” criou, por assim dizer, um espaço para a outsider art do século XIX, quando expressões artísticas consideradas extravagantes só podiam existir ao nível do cómico ou da fantasia. Um livro como Alice no País de Maravilhas, por exemplo, que denuncia a radical arbitrariedade da linguagem e as regras subjacentes à comunicação (e possibilite talvez dizer o que não pode ser dito, como o amor de um homem por uma rapariga?), foi denominado de “nonsense” porque se tratava de um conto de fadas, Alice in Wonderland.
Existe algo de reconfortante na literatura do século XIX ( antes de Freud, antes do domínio da terminologia psicanalítica do século XX e XXI) onde personagens singulares ainda podem viver na liberdade da sua excentricidade e desempenhar um papel na sociedade. O mais sedutor é talvez Mr Dick, uma das muitas personagens secundárias que habitam o romance de Charles Dickens, David Copperfield (1850). Recorda-se que David Copperfield é a autobiografia da personagem do mesmo nome que, numa grande visão retrospectiva, conta como se transformou de um menino abandonado num autor de sucesso. A sua história é obra de quem domina as palavras e sabe alinhá-las de tal modo que uma criança perdida adquira, em deambulação ascendente, um centro moral e emocional: “um coração disciplinado”.
Em criança, David é adoptado pela sua excêntrica tia Betsie e por Mr Dick que se tornam os seus tutores. Tal como David, Mr Dick escreve as suas memórias, não para demonstrar que é um herói como o seu pupilo, mas para apelar à Justiça contra a família que quer interná-lo num manicómio e aliená-lo dos seus bens.
Infelizmente para Mr Dick (e felizmente para nós leitores), a sua obra não progride. Sendo uma pessoa “fora de comum”, como diz a tia Betsie (autista ou esquizofrénico, diria hoje o leitor avisado) Mr Dick não consegue manter a cabeça naquilo que está a escrever e o seu texto é invariavelmente invadido pela cabeça de um outro, neste caso, a cabeça decapitada do rei Carlos I. Perseguido por esta alucinação (que nunca é chamada alucinação no texto), Mr Dick é obrigado, vez após vez, a interromper a história da sua vida e a deixá-la incompleta e sem sentido. Tão frágil e insubstancial é o “sentido de si” de Mr Dick que – conta o narrador - ao encher as bochechas de ar corre o perigo de se apagar a si próprio.
Aqui, porém, surge o génio criativo de Mr Dick (e de Charles Dickens que soube criar esta personagem): ele junta os manuscritos abortados e constrói com eles gigantescos papagaios de papel que faz voar no ar para “disseminar a sua mensagem”. Esta magnífica imagem é eloquente de tudo o que a teoria da literatura da segunda metade do século XX irá problematizar: a materialidade do signo linguístico, a opacidade da linguagem, a resistência da palavra ao sentido, a deferência necessária de uma palavra para outra de modo a que cada termo faça germinar outro num processo de significação interminável. (Não é possível ignorar aqui que a obra seminal do filósofo contemporâneo Jacques Derrida, La Dissémination, contém inúmeras parecenças com Mr Dick, desde o uso do termo dissémination até às duas palavras com que o texto de Derrida começa: “Tête coupée”: “cabeça cortada”).
No romance de Charles Dickens, Mr Dick é uma figura secundária que serve de contraponto humorístico a David. David é um herói do século XIX e a imagem de si mesmo que deseja ver reflectida nos olhos do leitor está ancorada em ideais de auto-realização (self-made man) e de integração na sociedade. Por isso, a forma a que aspira é movida por ideais de unidade e de harmonia. Sob a tutela de Mr Dick, David pode cortar, reprimir e ignorar tudo aquilo que impede a progressão do seu relato e atirar ao ar (à linguagem...) os ruídos e as interferências de corpos decepados.
A arte do início do século XX vai valorizar Mr Dick sobre David, o objecto sobre a palavra, a resistência em vez da transparência, a estrutura da narrativa sobre a narração. Os papagaios de papel serão recuperados em formas novas: corpos vivos servirão de suporte para os signos e corpos mortos serão exibidos enquanto condensação máxima de (sem)sentido. A loucura será celebrada como uma abertura potencial da consciência e apropriada, tanto por artistas como por pensadores, para criar novos modos de ver e de falar. A arte de contar uma história, sobretudo se o enredo estiver modelado sobre um conto de fadas, será desvalorizada em prol do poema-objecto ou do romance novo e um livro como David Copperfield não encontrará espaço, nem nos programas académicos de literatura (convenhamos, o livro tem 855 páginas), nem nos cânones proclamados pelos críticos. Estes preferem os romances de Dickens que se encaixam nas teorias mais recentes: quanto menos parecidos com frouxos monstros empapuçados (“loose baggy monsters”), como dizia Henry James, e quanto mais bem estruturados, melhor.
David Copperfield é um destes monstros insuflados onde se atropela uma massa de seres maravilhosos que teimam, a cada momento, ofuscar o herói da história. Personagens inesquecíveis como Mr Micawber, Uriah Heep, Mr Dick ou Mr Omer surgem como genii da pluma do seu criador e, à semelhança da cabeça do rei Carlos I nas memórias de Mr Dick, tendem a destabilizar o enredo principal. Aliás, a ameaça de as coisas poderem perder a sua forma (“to tumble out of shape”) aparece várias vezes no romance, sempre ligado ao objecto do livro ou ao acto de escrever. E, de facto, a exuberante vitalidade das personagens secundárias em David Copperfield não se deixa conter em nenhuma forma, a não ser talvez em algo suficientemente solto e desprendido como um romance chamado David Copperfield. Ali, as figuras feitas de palavras são como as pessoas: nenhuma teoria as pode conter, nenhum diagnóstico pode confinar a sua transbordante energia.
É sabido como os artistas do Modernismo se inspiraram na arte das crianças e dos loucos para chegar a formas novas, formas despidas de “pré-conceitos” que levam a questionar os hábitos que subjazem as representações convencionais. O livro de John M. MacGregor, The Discovery of the Art of the Insane (1989) é eloquente a este respeito. (Tem sido por ter tido o privilégio de conviver de muito perto com uma pessoa que toma as representações à letra e que confunde palavras e coisas que o meu espanto perante as mais elementares trocas verbais não deixa de crescer e que privilegio “ousider literature”, formas literárias que lembram a fundamental vulnerabilidade das palavras e das coisas). Também sabemos que esta investigação tem atingido representações fundamentais, como a palavra “eu”, por exemplo, cujo conceito se tornou muito fluido e que, como Mr Dick, corre o risco de se apagar a soprar uma vela.
Ao ler um romance aparentemente convencional como David Copperfield somos relembrados que o “eu” vive graças a um outro que lhe chama “tu” num mundo que é de todos. Uma reflexão sobre o romance permite imaginar modos criativos de pensar a vida em que o “eu” não vive em oposição ao outro, mas na sua relação com ele. Tratar-se-iam de formas que atravessaram as explorações formais do Modernismo e que se deleitaram no mundo flutuante do Pósmodernismo para perceber a necessidade de uma nova reformulação da dimensão ética. Olhemos para Mr Dick, por exemplo, que graças à sua excelente caligrafia, é empregado como copiador de documentos legais. A reprodução mecânica de jargão legalista protege Mr Dick contra a alucinação. Mas como o bondoso empregador de Mr Dick deseja respeitar a sua compulsão de escrever as memórias, providencia-lhe duas mesas de trabalho, uma para a actividade de copiar, outra para o acto de criação. Mr Dick move-se entre as duas, correndo de uma mesa para a outra, ora copiando, ora criando, “like a man playing the kettle-drums”,“como um homem a tocar um tambor dividido ao meio como uma laranja”.
David Copperfield, porém, está sentado a uma só mesa, escrevendo um só texto. Ao contrário do seu protector, deve conciliar a actividade física de formar letras com os perigos inerentes à criação. (Recorda-se que David Copperfield era o romance preferido de Sigmund Freud que deu o nome da mulher de David, Dora, a uma case study). David é realmente o herói do livro, capaz de caminhar na corda bamba estendida sobre os excessos e aporias da vida. Mas para escrever a sua obra, o artista necessita da tutela de quem frequenta os abismos e eleva ao ar aquilo que ali vê e aprende. Mr Dick, David e os seus leitores disseminam a mensagem de que viver é um acto criativo que implica riscos em que estamos todos implicados, juntos. (3)
Marijke Boucherie
28 de Setembro de 2009
Notas:
1 William Shakespeare. Hamlet. Edição Bilingue. Tradução de António M. Feijó (Lisboa: Edições Cotovia, 2001) p. 103.
2 Tradução de Teresa Casal do original inglês:
3 Agradeço Alexandra Rosa, Ana Arêde, Daniela Gomes e Teresa Casal pela sua ajuda
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1 comentário:
Soube-me divinamente esta leitura.
Parece que ainda a vejo, no tom apaixonante do seu português trémulo, a falar sobre a sua concepção de Literatura. Tão bem me fazia, tão bem me fazia.
Obrigado!
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