quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Das dicotomias aos binómios: o despertar da “Ciência Nova”

Maria João Afonso

Professora Auxiliar da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, Universidade de Lisboa



Três “binómios” constituem mote para este texto: “equilíbrio – desequilíbrio, tensão – intenção, fusão – difusão”, binómios que o pensamento cientificamente treinado convida, desde logo, a equacionar como dicotomias.
As dicotomias são um bem precioso para a ciência! Sugerem distâncias, contornos nítidos entre conhecimentos, contrastes, estabilidades, certezas, verdades, leis, tudo aquilo que qualquer ciência que se preze de o ser desde há vários séculos almeja, na senda do saber matemático. E para assegurar que a ciência jamais perderia de vista tais propósitos, muito contribuíram os esforços de alguns pensadores. Descartes (1596-1650), um mal amado dos nossos dias (de quem até se diz, sem pudor, ter cometido erros) (Damásio, 1994/1995), é a este respeito incontornável. No seu Discurso do Método, publicado em 1637, descreve um modelo de condução da ciência que faz substituir a então vigente autoridade do “dogma” pela autoridade da “razão”, num movimento bem ilustrativo do emergir do “individualismo”, por reacção ao teocentrismo medieval (Van Doren, 1991/2007). E a autoridade da razão fundamenta-se num conjunto de “preceitos”, que configuram os princípios do chamado cartesianismo – a selecção escrupulosa das informações de que se parte, a análise ou decomposição de um problema nas suas unidades mais fundamentais, a ordenação sistemática do pensamento na elaboração progressiva do conhecimento, a partir dessas unidades fundamentais, a revisão minuciosa das conclusões procurando assegurar que o problema foi tratado de maneira exaustiva e coerente. Diz do seu projecto apenas pretender firmar-se “na certeza e remover a terra movediça e a areia instável para encontrar a rocha ou a argila” (Descartes, 1637, Parte 3).
Estavam lançados os fundamentos filosóficos da metodologia científica da era moderna que, juntamente com o materialismo de Hobbes (1588-1679) (que separa sujeito e objecto, mente e corpo, pensamento e matéria), a definição atomista da matéria por Newton (1643-1727) (todos os corpos são inertes e compostos de unidades fundamentais), o positivismo de Comte (1798-1857) (o primado da observação, da experiência sensível, sobre a imaginação) e o empirismo de Locke (1632-1704) ou de Hume (1711-1776) (todo o conhecimento provém da experiência, dos sentidos) lançam os grandes pilares do pensamento científico de hoje, e firmam a convicção de que a ciência é um acto de descoberta criteriosa e sistemática da “verdade” (Overton, 2002): primeiro, ao reduzir os fenómenos aos seus fundamentos objectivos (livres de interpretação) e observáveis (redução e descrição); segundo, ao determinar as suas causas (explicação); terceiro, ao induzir hipóteses, teorias ou leis que os governam (conceptualização). E se esta lógica do fazer ciência se modera através da substituição, mais tarde, da noção de “certeza” pela de “probabilidade”, incorporando a plausibilidade da dúvida – “a ‘verdade’ científica é provisória ou, por outras palavras, a ‘certeza’ científica é probabilística” (Miranda, 2001) – a mudança é muito mais de estilo do que de substância, pois que deixa a nu a ambição de atingir os 100% de probabilidade na aproximação da “verdade”, numa “busca adolescente pela certeza absoluta à custa da compreensão complexa” (Dewey, 1929 citado em Overton, 2002).
Esta a filosofia da ciência que inspira o nascimento da psicologia científica e determina, nos seus primórdios, e à semelhança de muitas outras ciências, o assumir da tarefa árdua da identificação exaustiva e classificação dos fenómenos que observa – o estruturalismo de Wundt (1832-1920) e Titchner (1867-1927), na busca das componentes básicas da experiência imediata (sensações, percepções e emoções) ou a concepção atomista de inteligência de Galton (1822-1911), na busca das variáveis moleculares de cuja medição resultaria a estimativa da genialidade, constituem tão só exemplos bem expressivos desta postura de investigação em psicologia.
E desta filosofia se alimentam também muitas dicotomias desta ciência. Tomemos algumas: a dicotomia “eficiência – deficiência” estabelece os contornos de grupos a que a sociedade dispensa lugares distintos e distintas funções sociais. A “observação objectiva” dos indivíduos, por meio de testes que se definem enquanto situações estandardizadas cujos resultados se querem independentes de factores contextuais, tidos por “parasitas”, ou de fontes de erro de medida, pretende a estimação de um hipotético “resultado verdadeiro”, e constituiu, desde o início do século XX, com Binet (1857-1911) e Simon (1872-1961), a principal metodologia da classificação da deficiência (e mais tarde também da eficiência) intelectual ou, por outras palavras, o mais comum critério social para a identificação de indivíduos com deficiência mental. Cedo se estabeleceu, assim, uma classificação, baseada em critérios estatísticos, para a distinção entre o défice mental e a eficiência intelectual (por exemplo, QI<70) e a concomitante classificação dos indivíduos, geralmente conducente à sua colocação em escolas ou classes diferenciadas, à sua estimulação diferenciada, à sua exposição diferenciada a oportunidades de experiência. Como esta dicotomia provém de uma outra, mais profunda e abrangente, que distingue a hereditariedade e o meio como factores explicativos das diferenças inter-individuais, importaria não esquecer que esses factores, no plano individual, não actuam independentemente, como muitos psicólogos ainda hoje admitem, ao procurar discernir em termos percentuais, aditivos ou cumulativos portanto, o peso relativo desses factores na eficiência intelectual. Se entendidos como fontes independentes de influência no comportamento, entre estes factores desde logo se estabelece, então, uma dicotomia que pretende a determinação estável, segura, inequívoca do “papel” da hereditariedade e do “papel” do meio na “determinação” do “nível” de inteligência. Em aberto permanece ainda hoje a compreensão dos mecanismos e das modalidades de interacção entre factores inatos e experienciais que, em última análise, contribuirão para explicar fenómenos como o dos chamados “idiots savants”, pessoas que apesar de as taxonomias da ciência estabelecerem que não atingem os critérios mínimos da classificação como intelectualmente “eficientes”, ainda assim demonstram competências cognitivas excepcionais, mesmo em termos estatísticos na população, em áreas como o raciocínio lógico-matemático ou a expressão artística.
A dicotomia “natura - nurtura”, como muitas outras antinomias que radicam na filosofia cartesiana (como “mente – corpo”, “sujeito – objecto”, “estrutura – função”, “indivíduo – sociedade”, “estabilidade – mudança”) apoia a construção de uma ciência psicológica fragmentada (Overton, 2002, 2006), emergente ou de uma visão do mundo (Pepper, 1942) formista – que entende o mundo como colecção de fenómenos apenas detentores de relações de semelhança entre si (e, como tal, classificáveis em taxonomias) – ou, quanto muito, mecanicista – que já admite a ligação funcional entre os fenómenos, à maneira das peças de uma máquina, mas sobressai as suas conexões meramente lineares ou mecânicas. Este o quadro que sustentou e estimulou a investigação experimental (estabelecimento de relações entre estímulos e respostas, entre variáveis independentes e dependentes, entre causas e efeitos), e que configurou, também, por muito tempo, a estrutura de referência da medição das diferenças inter-individuais, entendidas como diferenças quantitativas em dimensões ou traços psicológicos latentes, relativamente independentes entre si, comuns a todos os indivíduos, e estáveis em cada um, e por isso passíveis de classificação em estruturas taxonómicas das aptidões ou dos traços de personalidade.
Este formato de ciência procura, assim, acima de tudo, o equilíbrio, a estabilidade, o conforto das certezas, ou pelo menos das elevadas probabilidades de aproximação da verdade. Requer, portanto, a separação, a subdivisão do seu objecto, a classificação dos seus fenómenos, pelo que tende à difusão, à decomposição e dispersão decorrentes da atitude analítica. E remete, sobretudo, para o indivíduo, isolado e passivo, para a tensão que emerge de um funcionamento que é “causa” do comportamento, mais do que para a “intenção” que o colocaria, senhor de si, em contexto. Não surpreende que, neste quadro, a criatividade, por exemplo, fosse por muito tempo entendida como traço que, à semelhança de outros, “conduz” (e sublinhe-se o nexo causal linear) à manifestação de diferenças individuais no comportamento, estas quantitativamente avaliáveis e passíveis de classificação ou ordenação por referência a outras, no âmbito da abordagem psicométrica (diferencial) que prevaleceu neste domínio de investigação, até cerca dos anos 70 (Candeias, 2008).

Será tentador, sem dúvida, prosseguir estabelecendo um contraste entre a ciência assim caracterizada, e uma nova ciência emergente após a década de 70 do passado século! Tal contraste impõe-se, de facto, mas assumi-lo meramente como “contraste” acarreta precisamente (e paradoxalmente) o perigo do erro de reducionismo e fundacionalismo (Overton, 2002, 2006), ao sugerir a substituição do “equilíbrio pelo desequilíbrio”, da “difusão pela fusão”, da “tensão pela intenção”. Em vez disso, tomemos os três grupos de conceitos não já como dicotomias ou antinomias, mas antes como “binómios” – a diferença está em que deixam de definir noções mutuamente exclusivas e passam a balizar espaços ou totalidades complexas, que não só comportam os conceitos extremos e aproveitam o conflito emergente da sua consideração simultânea, como contemplam e integram os que eventualmente possam emergir entre eles, ou acima deles, pela sua integração num todo.
Diz-se desta outra maneira de pensar a ciência que é complexa, contextualista, e sistémica. Sem dúvida equacionar os conceitos ou ideias em ciência não como dicotomias, mas como binómios, convida a encará-los num nível de complexidade superior, abandonando a postura analítica (“elementarista”) e adoptando, em vez dela, as atitudes sintética (“holista”) e/ou sistémica (“estrutural” e “relacional”) (Reuchlin, 1995, 1999/2002). A diferença entre estas está em que a síntese tende a diluir as unidades constituintes e conduz a uma integração dos conceitos iniciais num nível superior de abstracção, nível que de novo suscitará o estabelecimento de novos contrastes (antíteses) e integrações (sínteses) – no que remete para um processo dialéctico de construção do conhecimento, radicado na dialéctica hegeliana e orientado por uma visão do mundo organicista (Pepper, 1942); ao passo que a sistémica promove as relações entre unidades ao estatuto de objecto de estudo, e ao fazê-lo renuncia à estabilidade, aos contornos nítidos entre os elementos da estrutura, pois que eles se sobrepõem, são inter-dependentes e se definem mutuamente, mas sem que percam a identidade. A sistémica assume a forma de uma dinâmica em que a todo o momento se estabelecem novas interacções que conferem à estrutura novas qualidades, e a vários níveis de observação, gerando constantemente novos contextos que por sua vez afectam, de novo a vários níveis, as interacções entre elementos – razão por que se orienta por uma visão do mundo contextualista (Pepper, 1942).
Ora, o contextualismo detém a grande virtude de abrir o conhecimento ao desafio da complexidade. Não mais se aceita o clássico paradigma científico, “filho fecundo da esquizofrénica dicotomia cartesiana e do puritanismo clerical” (Morin, 1990/1995, p.81), baseado em entidades fechadas que não comunicam entre si, antes se opõem, repelem ou anulam mutuamente (como substância, identidade, causalidade linear, sujeito, objecto, etc.), entidades que tomam contornos nítidos, firmes e estáveis. Pelo contrário, assume-se uma nova atitude, a que Morin (1921- ) chamou, na sua obra Introdução ao Pensamento Complexo (1990/1995), scienza nuova, atitude que não apenas coloca a tónica sobre a relação em detrimento da substância, mas também sobre as emergências, as interferências como fenómenos constitutivos do objecto. “Não existe apenas uma rede informal de relações, existem realidades que não são essências, que não são feitas de uma só substância, que são compósitas, produzidas pelos jogos sistémicos, mas todavia dotadas de uma certa autonomia” (Morin, 1990/1995., p.73, sublinhado do autor) (Afonso, 2007).
Que lugar, então, às dicotomias, tão caras à ciência psicológica clássica? Retome-se a dicotomia “eficiência - deficiência”. Em contexto, de imediato ambos os conceitos se articulam, posto que não representam categorias classificativas dos indivíduos, em função de critério dito “objectivo”, antes se relativizam no plano da interacção indivíduo – meio. A “eficiência”, ou a “deficiência” que ela por definição contém na sua própria essência, depende do jogo complexo entre factores individuais e contextuais, a cada momento, o qual por sua vez determina, também a cada momento, uma mudança na qualidade global de todo o sistema que dará origem, por sua vez, a novas interacções que de novo modificarão o sistema. A lógica não é simplesmente aditiva ou cumulativa – entre factores individuais e contextuais – é antes uma lógica multiplicativa (Ceci, Barnett & Kanaya, 2003), que configura um processo de mudança epigenética (não genética): novas características e novos níveis de funcionamento emergem, à medida que o indivíduo se modifica, se transforma, os quais não podem ser reduzidos às, isto é, completamente explicados pelas, características anteriores do organismo (Afonso, 2007).
A outra antinomia de nível mais profundo e abrangente em que esta radica – “natura – nurtura” ou “hereditariedade – meio” – toma, então, um carácter sistémico e não mais mecanicista. A noção de que o meio funciona como um descodificador do mapa genético do indivíduo (bem alicerçada numa lógica cumulativa, posto que apoiada em factores independentes), ganha um carácter mais instável e dinâmico quando é equacionada em termos relacionais e epigenéticos: a cada momento, a natureza das múltiplas interacções que se estabelecem entre factores em presença, em múltiplos níveis de observação, depende do estado actual do organismo, ou seja, de toda a multiplicidade de interacções anteriores, que constituem, na visão do mundo contextualista, parte do contexto que configura esse “episódio” de interacção (Pepper, 1942).
Aliás, a metáfora dos genes enquanto “programa”, de inegável inspiração mecanicista, é não só desafiada, desde os anos 90, por autores que assinalam a modelação da acção dos genes em função de variações no meio – a cada momento, a acção dos genes no comportamento modifica-se, em consequência de mudanças anteriores que determinaram o “estado actual” do organismo, e em função de mudanças no meio, introduzidas, também, pelo próprio organismo (Tooby & Cosmides, 1992 citados em Ridley, 2004) – como é posta em causa pela introdução de uma nova metáfora – a dos genes ou sequências de ADN enquanto “dados memorizados”, tratados pela rede das reacções bioquímicas emparelhadas do metabolismo celular, que desempenha, então, a função de programa; este processo dinâmico, que por sua vez interfere na selecção dos dados (das unidades de informação genética) pertinentes nas fases seguintes de processamento, afecta o funcionamento dos diversos órgãos, pelo que os seus efeitos são de seguida desmultiplicados, numa cascata de efeitos, a outros níveis de funcionamento (Atlan, 1999/2001). Apesar desta metáfora computacional, ainda enraizada na visão do mundo mecanicista, está-se perante uma concepção contextualista, posto que não são ligações lineares causais (“explicativas”) que determinam a expressão fenotípica da informação contida nos genes, antes o jogo complexo de interacções, a diversos níveis, que por sua vez também interagem entre si, entre os factores genéticos (cujo efeito não é pré-determinado, mas antes modelado pelo próprio processo metabólico em curso) e os factores do contexto, que se desmultiplica também em distintos níveis.
De facto, a noção de que o meio é tudo o que se situa “para lá” do indivíduo, e o indivíduo tudo o que se situa “dentro” dele é, ela própria, decorrente de uma concepção fragmentada e cartesiana da ciência psicológica. Na acepção sistémica, e muito em particular na óptica dos sistemas dinâmicos, o contexto situa-se em vários níveis de observação – por exemplo, o fisiológico é contexto do bioquímico que por sua vez é contexto do genético; mas o fisiológico tem o seu contexto na rede metabólica que envolve todos estes níveis e que é integrada pelo processamento neuronal; e este é, por sua vez, contextualizado por aqueles. Por outras palavras, o “contexto”, é toda a miríade de fenómenos em presença, e que directa ou indirectamente contribuem para determinado “episódio”, seja qual for o nível a que este é observado. Cada “episódio” desencadeia outros, porque a sua ocorrência afecta, inevitavelmente, todo o sistema. Este efeito multiplicativo (Ceci, Barnett & Kanaya, 2003), não já meramente aditivo, dos factores biológicos e ambientais entre si (factores cujos contornos se diluem, então, pois que a cada momento constituem, ao mesmo tempo, indivíduo e contexto), é completamente ignorado pela epistemologia cartesiana fragmentada, cega às dinâmicas relacionais que se estabelecem entre as unidades elementares do sistema, e vem a ser incorporado, apenas a partir dos anos 90, num modelo da inteligência humana – a teoria Bioecológica da Inteligência (Ceci, 1996) – e, em diversos modelos da área da criatividade (Candeias, 2008). Nestes avulta, para lá do carácter sistémico e integrativo, radicado numa visão contextualista, a noção de que “ser criativo” é acima de tudo uma “tomada de decisão” do indivíduo relativamente ao desenvolvimento de produtos criativos, decisão que depende de um conjunto de factores, incluindo a atitude, o investimento e as capacidades (Sternberg & Lubart, 1991).
Acrescentar a intencionalidade – o indivíduo decisor, que antecipa, que planeia, que estabelece finalidades – implica assumir uma outra visão do mundo, a visão selectivista. De acordo com Pepper (1966), esta nova visão do mundo pode ser entendida como uma revisão radical do contextualismo, sem o substituir: o indivíduo é um “sistema selectivo” que opera no sentido de procurar eliminar erros e acumular resultados correctos de acordo com os critérios adoptados pelo sistema. O selectivismo assenta nos três atributos distintivos dos sistemas altamente complexos, os sistemas do “nível humano” de Le Moigne (Durand, 1979/1992, pp.31-34): a imaginação, a consciência e a intencionalidade. Assumir uma visão do mundo selectivista em psicologia da inteligência, ou da criatividade, implica que a definição destes construtos e a sua investigação vá além da consideração dos aspectos internos do funcionamento cognitivo, dos aspectos contextuais desse funcionamento e até mesmo do assumir da interacção complexa entre as duas categorias de factores. Implica postular que a cada momento, e perante cada situação ou problema (no aqui e agora), o indivíduo humano tem o poder não só de perceber e conceptualizar a situação, mas ainda de reconhecer-se a si próprio na situação; de definir e gerir objectivos e finalidades; de controlar em alguma medida os factores pessoais e situacionais em presença (modificar-se a si, mas também ao meio); de identificar, a partir da experiência, alternativas de acção tendentes ao atingir dos objectivos ou, mais, criar novas alternativas quando as automatizadas não respondam às finalidades do indivíduo, ou às exigências da situação; de predizer, com grau de certeza variável, as consequências das suas acções e, em última análise, de decidir qual a acção “melhor” do ponto de vista da satisfação das suas necessidades e no contexto dos condicionalismos que a situação lhe impõe.
A visão do mundo selectivista de certo modo resgata o indivíduo da posição de “vítima” passiva da miríade e factores contextuais que o afectam, a diversos níveis (incluindo todos os classicamente entendidos como individuais), ao reconhecer-lhe o poder de gerir os seus próprios investimentos e recursos. Confere-lhe ainda o poder de “mudar” – de potenciar esses recursos, capitalizar as suas potencialidades, corrigir ou compensar os seus défices, em função dos seus objectivos pessoais e dos objectivos da cultura em que se move, uma formulação contemplada em algumas definições actuais de inteligência (Sternberg, 2001; ver Afonso, 2007). E encontra suporte na investigação neuropsicológica: de facto, quando se compara o cérebro humano com o dos primatas mais próximos, não se observam novas estruturas; o que difere, para além do coeficiente de encefalização superior (maior proporção volume do cérebro / volume do corpo), é a extensão do neocórtex, em particular dos lobos pré-frontais e das estruturas do sistema límbico que a eles se ligam estreitamente (Bjorklund & Kipp, 2002 citados em Afonso, 2007). Aos lobos pré-frontais é atribuído o controlo executivo tendo em vista assegurar o eficiente processamento de informação (filtrar informação irrelevante, dirigir e manter a atenção concentrada nas representações relevantes), a síntese de informação cognitiva e emocional, a monitorização do comportamento próprio e dos estados mentais dos outros, da identidade pessoal e da percepção dos outros, e o controlo do comportamento social em função das circunstâncias; a ele são atribuídas funções como o pensamento criativo, o planeamento de acções futuras, a tomada de decisão, a expressão artística, aspectos do comportamento emocional e social, a memória de trabalho, a “teoria da mente” (reconhecimento de mente nos outros), o controlo da linguagem e das funções motoras e o controlo do comportamento através da inibição dos impulsos (Beer, Shimamura & Knight, 2004, Bradshaw, 2002 e Bjorklund & Kipp, 2002 citados em Afonso, 2007). Ao nível neuropsicológico não só se identificam competências que podem ser tomadas como caracteristicamente humanas, como também se verifica uma estreita ligação entre essas competências “cognitivas” e níveis inferiores ou mais primitivos de processamento, como o processamento das emoções – nesta acepção, a inteligência depende do funcionamento de um cérebro entendido como “sistema de sistemas” (Damásio, 1999/2000, p.376).
Retomemos, agora, os três binómios “equilíbrio – desequilíbrio, tensão – intenção, fusão – difusão”. Não mais a estabilidade dos conceitos (equilíbrio), a sua natureza pulsional ou interna (tensão) ou a sua pulverização em modelos de raiz taxonómica ou mecanicista (difusão) satisfazem a compreensão dos fenómenos em toda a sua complexidade e riqueza. Esta complexidade apela antes à concentração na dinâmica entre conceitos aparentemente opostos, mas que não se excluem mutuamente nem se repelem, antes se combinam e se entrecruzam. Esta opção implica entender o funcionamento psicológico do ponto de vista do processo, evidência que se terá imposto a Piaget quando falou de “equilibração”, uma dinâmica que inclui e concilia, num modelo único (assimilação/acomodação), os equilíbrios e os desequilíbrios; implica também tomar como objecto todo um sistema de elevada complexidade, que envolve aspectos do funcionamento não controlados pelo indivíduo (tensões) mas que se utiliza também da sua capacidade de decisão, de controlo, pelo menos parcial, dos recursos que utiliza e do investimento que neles faz (intenções); implica, afinal, tomar em simultâneo diversos níveis de observação e explanação, desde os clássicos conceitos “elementares” (difusão), que não são excluídos mas integrados na análise do sistema, até aos níveis mais complexos e integrativos, nos quais esses elementos se cruzam, se interligam, se definem reciprocamente e integram (fusão).
A “ciência nova” apela a um novo quadro epistemológico – a metateoria relacional (relational metatheory) (Overton, 2006; Overton & Ennis, 2006). Esta emerge de uma visão do mundo como série de formas activas e em permanente mudança, e substitui as clássicas antinomias – como, por exemplo, natura-nurtura – por um holismo fluido e dinâmico que envolve conceitos como auto-organização, sistema e síntese de totalidades. Nega, por consequência, que o mundo seja decomponível em formas puras, fixas e fundamentais (suporte das antinomias) e recusa ao mesmo tempo o elementarismo, o reducionismo e o atomismo que caracterizam a metateoria fragmentada típica das ciências clássicas (split metatheory). Em interessante contraponto aos antes citados “preceitos” cartesianos, a metateoria relacional assenta em quatro princípios orientadores: o holismo (a identidade dos objectos ou dos fenómenos define-se no contexto relacional ou sistema no qual estão inseridos; o todo não é um agregado de elementos mas um sistema organizado e com capacidade de auto-organização, sendo que cada parte não se define a partir das suas “propriedades”, mas sempre a partir das “relações” com todas as outras partes do todo); a identidade de opostos (a identidade dos elementos não se estabelece a partir de contradições ou contrastes, mas enquanto polaridades de uma matriz relacional inclusiva em que os pólos se definem reciprocamente, cada pólo definindo e sendo definido pelo seu oposto, o que faz depender a sua identidade da própria indissociabilidade); os opostos da identidade (movimento no sentido de um “momento” de análise, em que de certo modo “figura” e “fundo” se invertem e, ao sobressair os contrastes, se estabelece exclusividade entre os pólos, que são encarados como complementares, como “pontos de vista”, “perspectivas”, nenhuma assumindo carácter absoluto ou fundamental); e a síntese de totalidades (consiste em mover-se para o centro do conflito e identificar um novo sistema que, porque coordena os outros dois, representa um novo nível estrutural e funcional emergente do conflito no nível anterior – síntese de opostos – sistema que constitui, por sua vez, um novo ponto de vista. No exemplo natura-nurtura, o sistema coordenador é, em psicologia, o “organismo humano”, a “pessoa” (Overton & Ennis, 2006, p.150).
Longe vai, nesta acepção, a ciência encarada como descoberta da “verdade”, com grau variável de “certeza” - absolutos que uma epistemologia relacional não pode aceitar. Ela constrói-se, em vez disso, na busca incessante de significado. Diferentes pontos de vista sobre os fenómenos ou conceptualizações distintas, eventualmente inspiradas por diferentes visões do mundo e assentes em metodologias de observação e tratamento de dados também diversas, coexistem, desde que cientificamente pertinentes, e socialmente relevantes (Miranda, 2001), não estando em causa decidir qual o ponto de vista privilegiado sobre um fenómeno. E é por ser um acto de construção de significado que a ciência tanto depende do contexto cultural e do momento histórico em que se desenvolve, do “espírito do tempo” (Zeitgeist) em que se constrói, que é, assim, parte integrante dos paradigmas de investigação, das teorias, dos conceitos, dos métodos de observação e dos métodos de organização dos dados de observação.
Este empreendimento não é fácil, há que reconhecer! Em vez da estabilidade dos conceitos e das teorias, em vez da consistência temporal dos fenómenos, em vez do conforto das elevadas probabilidades associadas às “rejeições da hipótese nula”, em vez da decomposição da variabilidade em componentes de variância associadas a factores isoláveis, a metateoria relacional impõe relatividade de conceitos, mudança permanente dos fenómenos e dos contextos que os definem e desconforto associado às incertezas, às dúvidas e à ausência de contornos nítidos, tudo incómodos inevitáveis ao adoptar esta forma de fazer ciência.
A “ciência nova” exige, enfim, do investigador, capacidade para resistir à ambiguidade, à mudança, à incerteza, à relatividade, à instabilidade. Capacidade para abandonar a promessa da “certeza absoluta” e enfrentar o espectro do “absoluto relativismo” (Overton, 2002). Numa expressão, exige-lhe que seja suficientemente flexível e criativo para trabalhar, com rigor, confiança e elegância, “na corda bamba”.

Referências:
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